“O brado retumbante”, ou Retórica de uma política cínica

Com “O brado retumbante”, a Globo volta a falar de política por meio da ficção, e desta vez aparentemente correndo poucos riscos. Há todo um cuidado a fim de se evitar qualquer proximidade com o cenário político atual: a presidência é exercida por um homem, que chega ao poder por obra do acaso; a capital federal havia sido transferida de volta para o Rio de Janeiro; não há qualquer menção a partidos, e por aí vai. Mesmo quando há referência a temas recentes, ela é positiva – temos um presidente blogueiro, que se utiliza das redes sociais para mobilizar a população.

Ao contrário do que se pode pensar, o fato de não haver referências ao cenário político atual não deve proibir uma análise crítica da obra. Se, de um lado, não há menções aos atores políticos presentes, por outro há a livre elaboração de um mundo político idealizado, no qual vão se projetar todos os planos e desejos não atingidos na realidade. Observar “O brado retumbante” é inteirar-se sobre uma determinada visão de mundo, que passa a ser compartilhada com todo o país por meio da televisão. Mas que Brasil é esse, segundo os ideais trazidos pela mini-série?

A trama é construída em torno do deputado federal Paulo Ventura, um político que se tornou popular pela luta contra a corrupção. Presidente da Câmara, ele assume a Presidência da República após as mortes do titular e do vice em um acidente aéreo. Como mandatário do país, ele se utiliza da oportunidade para tentar moralizar a política brasileira, deste modo derrotando seus antagonistas, políticos corruptos da pior espécie. Enquanto assume as vestes de herói na vida pública, Ventura enfrenta dificuldades na vida particular. Trata-se de um marido infiel, que deixa esposa e filhos em segundo plano ante uma nova aventura amorosa. Contudo, o exercício do poder o colocará ante o desafio de reconstruir sua própria vida.

É este conflito entre o mundo público e o mundo privado que define “O brado retumbante”. E, como veremos, encerra a idealização da política de uma das formas mais cínicas possível.

Segundo “O brado retumbante”, o Brasil precisa de um novo herói, de um novo salvador da pátria. De acordo com esta visão de mundo, o país resolve-se a partir do momento em que o tema da moralidade pública estiver resolvido. O que se busca é um novo Jânio Quadros, para varrer os corruptos de Brasília, ou um novo Fernando Collor de Melo, alguém que cace os marajás tupiniquins. O apelo que a Globo leva ao ar por meio desta nova série em quase nada se diferencia daquele que ajudou a eleger Collor em 1989 – Ventura é sua versão2012. Ahistória se repete, mais uma vez trágica.

O que esta visão de mundo quer sugerir é que, resolvidos os desvios na gestão pública, o Brasil estará em ordem, permitindo que o progresso venha. Nenhuma menção a qualquer outro desafio político. O país não precisa de um presidente para solucionar problemas relacionados à fome ou à pobreza. Não há qualquer orientação econômica a ser repensada, alterada. Não há o desafio de fazer da Educação meio de formação para o trabalho e para a cidadania. Muito menos a Saúde tem a necessidade de chegar gratuitamente a uma parcela cada vez maior da sociedade. Não. O debate político esgota-se no combate à corrupção.

Como se vê, trata-se de uma visão da política extremamente limitada. O restrito tema da moralidade pública reina ante qualquer discussão ético-universalista. O cinismo, antes mencionado, se deixa perceber no conflito interno do protagonista. O Presidente Ventura, em sua esfera íntima, é a mera repetição do padrão do homem brasileiro. Primeiro, machista, ao coisificar e submeter as mulheres que encontra e se relaciona (incluindo aí secretária, enfermeira e mesmo uma eventual presidenta dos EUA) a mero apetrecho sexual. Segundo, homofóbico, ao renunciar e banir o filho, que assumiu sua preferência sexual por homens como ele.

O happy end exigido para obras como esta levará a que Ventura, tendo conseguido ou não moralizar a política brasileira, se reconcilie com sua família, sua esposa e seus filhos. A resolução do dilema na esfera íntima faz esquecer que estes mesmos problemas permanecem inalterados no mundo público. Assim, o presidente, que se tornou um homem melhor no decorrer da série ao corrigir posturas machistas e homofóbicas, nada fez durante seu mandato para conter a violência contra mulheres e homossexuais, para munir de direitos estas pessoas, em particular direito de ser respeitado, trabalhar, viver com dignidade.

“O brado retumbante”, deste modo, grita por moralidade pública, e apenas por isso. Agindo assim, cala-se diante de temas mais universais, em particular aqueles mais polêmicos. Trata-se da repetição uma fórmula esgotada, que simplifica a questão e simultaneamente relativiza e naturaliza uma série de outros problemas. Que não se entenda aqui que a correção no exercício do Poder Público não é necessária. Ela é urgente e requer inovações, em particular incluindo a sociedade em seu controle. Contudo, reduzir o debate político a este tema é ignorar cinicamente uma série de desafios que o Brasil tem a obrigação de enfrentar.

8 Comentários

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8 Respostas para ““O brado retumbante”, ou Retórica de uma política cínica

  1. Clarisse (DS BH

    Olá Compa,
    ADOREI o seu texto. Estou acompanhando a séria e vc conseguiu fazer uma ótima análise. Deu voz aos meus anseios rsrs!
    Bjos,
    Clarisse

  2. eu acho que esse presida tá mais com cara de aécio do que collor, ainda mais nestas questões comportamentais super atuais!

    • Olá João! Acho que esta proximidade com o Aécio é possível. Aliás, não duvido que em 2014 ele retome justamente este discurso da moralidade pública. No entanto, acho que a restrição da política a este tema seja muito mais grave, principalmente porque faz com que as pessoas não discutam política, e pior, não vejam nela o caminho para conquistar seus direitos. Assim, o discurso por trás da série é bem pior que qualquer semelhança com políticos atuais…

  3. Vinicius Campos Freitas

    Analise interessante, e confesso que acompanhando a série tive as mesmas impressões. A imagem dos parlamentares, do legislativo e da política como um todo é negativamente reforçada … o presidente mártir das causa públicas é a única figura exaltada, o sucesso da política é estritamente vinculada ao poder presidencial.

  4. Paulo

    Não assisti a esta minissérie e nem pretendo, mas não acho que esteja no escopo dela abordar política econômica e outros assuntos complexos, pelo menos não detalhadamente. Lembrem que, acima de tudo, é um programa de tv destinado a uma grande massa que pouco entende destes assuntos. Assim sendo, é óbvio que é muito mais fácil focar na corrupção, que é um tema que gera paixão e cai como uma luva no arco dramático, protagonista/antagonista, bem/mal etc. É claro que a Globo está passando seu posicionamento de forma sutil, mas em todo caso não se pode esperar muito mais.

    • Olá Paulo! Agradeço por sua opinião. Concordo que seja difícil de apresentar temas mais complexos. Contudo, acredito que a opção pelo tema da moralidade pública não tenha ocorrido por este ser mais fácil, mas justamente por ser uma orientação já há muito seguida pela grande mídia. Todas as recentes crises políticas têm este ponto como seu eixo. O que a Globo faz, mais uma vez, é reforçar o ponto de que o que o país precisa é de um líder moralizador. O que ignora toda uma série de temas importantes.

      Abs!

  5. Roberto Joaquim

    Olá Caro Blogueiro;

    Sim, o foco ficou mesmo na MORALIDADE, mas se pensarmos que o custo da corrupção, tira crianças da escola, paga mal aos professores, deixa morrer os pobres brasileiros em filas de hospitais, e tudo mais…De repente é um ótimo começo, MORALIZAR. O questão é que os brasileiros, desistiram de assistir a mini série, a audiência caiu…A Globo força demais no horário, para vender o BBB ela sacrifica o coitado do brasileirinho que precisa acordar cedo no dia seguinte…Aí fica complicado…Sofisticar o conteúdo intelectual é abrir mão da massa emburrecida…Então, no frigir dos ovos…Acredito que bater na MORALIDADE como bandeira central foi a opção que restou ao ator. Embora pudesse ser melhor contextualizada, eu gostei muito do seriado. Queria que houvesse reprise num horário adequado ao horário do povo. E que outras iniciativas como estas pudessem ser produzidas. Grato pelo espaço.

    • ronaldoecarla

      Olá Roberto, concordo com o seu ponto de vista e acredito que moralizar parece ser o ponto de partida para que outras questões sejam resolvidas. O horário do programa foi uma sacanagem a quem acorda cedo, mas é possível assistir no youtube, e até baixar para o computador para assistir depois. Os episódios estão lá em alta definição e pretendo terminar de assistir ao seriado nos próximos dias. Fica a dica. 🙂
      Gostei muito do texto do autor, e embora concorde que a questão ficou muito resumida a moralizar e não a resolver problemas, acredito que não seria possível discutir isso num seriado de 8 programas com cerca de 40 minutos de duração cada, e que a dramatização em um seriado para as massas exige um formato mais direcionado, moralização pública e problemas na vida privada.
      O que me chamou mais a atenção é a dualidade ética do ator principal, que age com ética na vida pública e falta com ela na vida privada.

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